terça-feira, 27 de julho de 2010

Texto: Território de Experimentação

Os recentes trabalhos de Isabel Sommer dialogam com uma parcela significativa da produção artística contemporânea, que busca suscitar novos sentidos e problemáticas a partir do cruzamento entre linguagens, materiais, suportes e procedimentos. No caso de Isabel, sua poética se constitui na confluência entre práticas e indagações dos campos da gravura e da pintura.

Sob o título de Impregn-ações, as obras ora apresentadas foram desenvolvidas como projeto final de graduação junto ao curso de Artes Visuais da Feevale, em Novo Hamburgo. Como tal, assinalam não apenas o fechamento de questões presentes durante o período formativo, mas, sobretudo, a abertura de uma linha de investigação que tende a ser tenazmente trabalhada e discutida pela artista.

De materiais e processos
Tomemos os elementos constitutivos da presente exposição: nove telas e uma matriz em madeira, sendo esta última a origem das demais. Se as telas instantaneamente nos reportam à tradição da pintura ocidental, a matriz nos lança ao campo da xilogravura.

O interesse de Isabel pela madeira se firmou em 2008, quando a artista começou a fazer frottages em caules de árvores. Frottage vem do verbo francês frotter, que significa riscar, esfregar. Na sua forma mais simples, a frottage consiste em sobrepor uma folha de papel a uma superfície áspera, friccionando sobre a mesma um material riscante, que permitirá o registro das partes proeminentes. Foi de modo similar que Isabel iniciou seu percurso, “encapando” caules de árvores com pedaços de algodão cru e cobrindo-os com tinta. Após alguns dias, retirou os panos, recolhendo com os mesmos, metaforicamente, uma espécie de “memória vegetal” e também temporal, corporificada nas manchas, linhas e texturas amalgamadas à superfície do tecido. Do contato entre essas matérias, portanto, ficaram vestígios.

A consciência das possibilidades formais e simbólicas presentes nesse procedimento basilar de impressão levou-a ao desenvolvimento de Impregn-ações. Nesta série, Isabel partiu de cinco chapas planas de madeira de pínus (270 x 30 cm), todas marcadas pela presença de muitos veios e nós que, entretanto, estavam planificados, devido ao corte e polimento da madeira. Para resgatar e salientar essas características, a artista aplicou diversos banhos de jato de areia na superfície lenhosa, fazendo emergir o desenho interno da madeira. Após, unificou as cinco chapas, criando uma única e gigantesca matriz (270 x 150 cm).

O processo de jateamento, nesse trabalho, foi nodal, uma vez que revelou linhas e reentrâncias que passaram a ser exploradas plasticamente no momento da impressão, graças aos diferentes contatos entre a matriz, o suporte e as tintas. O resultado são formas essencialmente gráficas, que revelam sua gênese, possibilitando ao espectador perceber o cerne na superfície.

Do gesto
Se, nas primeiras frottages em árvores, os agentes eram, eminentemente, o tempo e os eventos climáticos, nesse segundo estágio, a força e a pressão se mostraram fundamentais. Elas transparecem tanto no já citado jato de areia, responsável pela nova topografia do pínus, como no vigor físico da artista, necessário para comprimir a tinta contra a tela e, esta, contra a gigantesca matriz. Quanto a isso, vale destacar que as grandes dimensões e características dos materiais, bem como dos processos, obrigam-na a se colocar de um modo especial diante do suporte: enquanto matriz e tela ficam na horizontal, Isabel se impõe na vertical, pressionando-as. Tal relação lembra a do pintor Carlos Vergara com suas exuberantes monotipias – uma referência, aliás, fundamental à artista. Vale comentar também que esse suporte na horizontal tende a não somente atrair, mas a receber e a deixar-se impregnar pelos outros materiais agregados, notadamente os pigmentos e as tintas.

Na instauração da obra, no trânsito constante entre práticas e reflexões, Isabel explora materiais, ferramentas e estratégias ora do universo da gravura, ora do campo da pintura. Grafite, giz, pigmentos, emulsões e um rodo de serigrafia, entre outros, formam o seu ferramental. Já entre os procedimentos adotados, encontramos tanto a repetição do módulo, como a sobreposição e o acúmulo de camadas de tinta, num diapasão cromático que vai dos brancos aos pretos, dos ocres aos vermelhos mais intensos.

O trabalho se coloca, dessa forma, como território híbrido, de experimentação constante. E é essa sua principal característica e virtude. De um lado podemos reconhecer uma preocupação poética em reter as estrias, as memórias e as grafias da madeira, mas de outro, o que se afirma, peremptoriamente, é o fascínio da artista pelo processo criativo e pelos desdobramentos formais alcançados por tal empreitada. Isabel Sommer, como todo jovem artista, está buscando sua linguagem, está encarando suas questões. Hoje, elas orbitam, vigorosas, em torno desse encontrar-se em meio à vertigem.

Paula Ramos
Jornalista, crítica de arte
e professora do Instituto de Arte da UFRGS